A Apologia de Chris Paul

“Pode descobrir-se mais a respeito de uma pessoa numa hora de jogo que num ano de conversação”
– Platão

Defendeu-se Sócrates (o da Grécia Antiga, não o de Paris) de acusações pouco concretas dizendo que os seus acusadores nada disseram de verdadeiro, embora tenham sido tão convincentes de que ele próprio se chegou a crer culpado. Que face à retórica usada contra ele, pouco mais tinha a fazer que defender-se com a verdade. Pois bem, dado que Chris Paul (para já) não tem a sua ‘Apologia’ editada, cabe-me fazer as vezes de Platão e ir atrás dessa mesma verdade.

 

Primeiro, as acusações. ‘Não tem anéis’. ‘Falha nos playoffs e nos momentos decisivos’. ‘Devido ao feitio conflituoso  que tem, falta-lhe a capacidade de liderança para o sucesso’. De facto, se alguém abrir a página do Basketball Reference e olhar para o seu palmarés colectivo, a ausência de títulos, presenças em finais e até a singela presença numa final de conferência (à qual juntará brevemente uma segunda) parecem sugerir que estamos a olhar para um jogador muito bom, sim, mas que nunca se afirmou na elite da sua geração. É uma mentira repetida muitas vezes…

 

Como pode haver então quem afirme que se trata de um dos melhores point guards de todos os tempos, e definitivamente um dos melhores desta geração? Bem, para já, pessoas que vêem jogos, para os outros nada temam, estou cá eu.

 

Comecemos pelo óbvio. O basquetebol é um desporto que envolve 5 jogadores em sincronia, concentrados em duas macro-tarefas essenciais: meter a bola num cesto, e impedir o adversário de fazer o mesmo, e que existe um tecto ao que um único jogador pode fazer individualmente, ignorando o restante contexto (ver James, Lebron, 2007 NBA Finals). Mas alinhemos que sim, que falha nos playoffs, e vejamos então o que nos dizem os números de Chris Paul na postseason:

 

 

Hmm. Passando a parte de estatísticas mais cruas, que dificultam em bastante medida comparar eras e o que significam por si mesmas, dada a diferença em tamanho das amostras, como atestam a presença de nomes como John Wall, Baron Davis ou Brian Taylor (!), chegamos às avançadas. PER, uma fórmula admitidamente imperfeita (e que tende em larga medida a beneficiar a eficiência de jogadores interiores) coloca-o como melhor Point Guard de sempre nos playoffs. BPM, que mede a quantidade de pontos por 100 posses de bola que a equipa é melhor com o jogador, tendo em conta variáveis como eficiências ofensiva e defensiva e rotações utilizadas, e WS/48 que mede a proporção de vitórias da equipa pelo qual o jogador foi responsável, colocam-no apenas atrás de Magic Johnson (um nome familiar nestas andanças) entre Point Guards, e firmemente no top 10 de todos os tempos.

 

Mas caramba, se o homem é assim tão bom, como justificamos a falta de bling bling no final do ano? Afinal de contas, qualquer homem casado tem mais anéis na mão que ele. Eu, que não sou, tenho os mesmos. Bem, só se chamam de ‘desculpas’ se não forem justificadas, e o Point God, infelizmente, está cheio delas. Entre azar com lesões, all-time players como adversários, e equipas simplesmente mais fracas, os caminhos dos seus playoffs foram sinuosos e frustrantes. A saber, desde que apareceu na cena do playoff, na sua terceira época:

  • 2007/08: derrota na segunda ronda, 3-4 vs #3 Spurs. Na sua estreia em playoffs, Chris Paul e os Hornets despacham os Mavs em 5, e perdem um jogo 7 em casa contra os campeões em título. Tem médias de 23.7p/4.4r/10.7a/2.6s e o bballref dá-lhe um game score na série de 22.1. O segundo melhor é Manu Ginobili, com 15.4;
  • 2008/09: derrota na primeira ronda, 1-4 vs #2 Nuggets. Numa série sem história, Chris Paul foi dominado por Chauncey Billups e Carmelo Anthony, que chegariam à final de Oeste, perdendo com os campeões Lakers. O terceiro melhor jogador dos Hornets na série é James Posey, com estrondosos 11p/6r, em 37% de campo e 26% de 3;
  • 2009/10: Hornets falham os playoffs. Chris Paul tem a sua primeira lesão no joelho, alinha em apenas 45 jogos e os Hornets terminam 37-45. Não voltará a falhar os playoffs no resto da sua carreira;
  • 2010/11: derrota na primeira ronda, 2-4 vs #2 Lakers. CP3 joga o melhor basquetebol da sua carreira (acreditem, eu sou dos Lakers e estava lá para ver), insuficiente para fazer frente aos bicampeões. Acumula médias de 22p/6.7r/11.5a em 55% de campo, 47% de 3 e um Game Score de 22.8. Kobe é o melhor dos Lakers, com 14.5; a segunda arma ofensiva dos Hornets chamava-se Carl Landry. Alguns lembrar-se-ão.
  • 2011/2012: derrota na segunda ronda, 0-4 vs #1 Spurs. Pela primeira vez na sua carreira, CP3 não foi o melhor elemento da sua equipa numa eliminação. No primeiro ano de Lob City, Blake Griffin jogou melhor que o seu base nessa série e foram completamente impotentes frente a uma das grandes equipas de todos os tempos, os Spurs de 2012-14, que na sweep obtiveram a sua 18ª vitória consecutiva e 29ª em 31 jogos;
  • 2012/13: derrota na primeira ronda, 2-4 vs #5 Grizzlies. Blake Griffin joga a série condicionado por lesão, e CP3 não consegue impedir o colectivo de Memphis de levar a melhor. É o melhor jogador da série com um game score de 20.1, seguido de Mike Conley com 16.0. O segundo melhor Clipper? Matt Barnes com um game score de 9.0 e médias de 12p/5r;
  • 2013/14: derrota na segunda ronda, 2-4 vs #2 Thunder. Com médias de 22.5p/11.8a/2.5s, Chris Paul e os Clippers não conseguem fazer frente a KD e Russ, e perdem contra uma equipa superior;
  • 2014/15: derrota na segunda ronda, 3-4 vs #2 Rockets. CP3 perde os primeiros 2 jogos por lesão, e apesar de mais um 20/10 de média na série, os Clippers caem em 7 jogos contra os Rockets de James Harden;
  • 2015/16: derrota na primeira ronda, 2-4 vs #5 Blazers. CP3 volta a perder 2 jogos por lesão, Blake Griffin mais 2, e apesar de ser novamente o melhor jogador na série, os Clippers simplesmente não tiveram talento disponível para disputar a eliminatória;
  • 2016/17: derrota na primeira ronda, 3-4 vs #5 Jazz. Blake Griffin perde 4 jogos por lesão, Chris Paul é o melhor jogador da eliminatória com 25p/10a, mas com DeAndre Jordan como primeiro ajuda pelo segundo ano consecutivo, sai de cena à primeira;
  • 2017/18: derrota na final de conferência, 3-4 vs #2 Warriors. A mais penosa. Contra a melhor equipa do século, os Rockets lideram por 3-2. A coxa de Chris Paul dá de si, não volta a jogar na eliminatória, e os Rockets desperdiçam vantagens na segunda parte nos jogos 6 e 7;

 

  • 2018/19: derrota na segunda ronda, 2-4 vs #1 Warriors. Num rematch do ano passado, pouco houve a fazer frente aos bicampeões em título, claramente superiores em toda a linha;
  • 2019/20: derrota na primeira ronda, 3-4 vs #4 Rockets. Numa época em que o feito verdadeiramente sensacional foi trazer os Thunder aos playoffs, Chris Paul cai à primeira frente à antiga equipa;

 

OK, está tudo. Parece de facto um registo fraco quando olhamos à primeira: 12 idas aos playoffs, apenas uma final de conferência, 7 séries ganhas e 12 perdidas. Mais a fundo, começamos a ver que isto é tremendamente injusto para o rapaz:

  • Em 5 das 12, é o melhor jogador da série. Não da própria equipa, mas da eliminatória completa;
  • Em 5 das 12, ele ou um colega essencial perderam jogos por lesão;
  • Em 7 das 12, a sua equipa era o seed mais baixo; em duas das outras 5, tinham o seed mais alto frente aos Spurs (#2 vs #3) que eram campeões em título, e o absurdo é os Hornets terem sido segundos no Oeste, e frente àqueles Warriors, que, bem, eram melhor equipa;
  • E acima de tudo, as melhores ajudas que Chris Paul teve chamaram-se David West, Carl Landry, Matt Barnes, Blake Griffin, DeAndre Jordan, ShaiGilgeous-Alexander e, numa tentativa de parar aqueles Warriors, James Harden.

 

Quando, exactamente, era suposto Chris Paul ter ganho um título? Quem, exactamente, ganhou um título com este tipo de talento à sua volta? Talvez os Mavs de 2011. De resto, temos sempre equipas com mais do que uma estrela a levantar o título durante a sua carreira (excepção aos Raptors, que viram os Warriors pisar minas à sua frente e ficaram todos sem pernas e/ou joelhos). E por isso cá estamos, a ouvir dizer que Chris Paul não tem o que é preciso para ser campeão.

 

Em interesse da total transparência, em 20 anos de NBA, vivo perfeitamente convencido de que foi o melhor base que vi jogar. Sim, melhor que Steph. Curry é sem dúvida mais importante na história do jogo, pelos MVP’s, pelo que atingiu colectivamente e por ser o poster do que a liga é hoje em dia. Mas tiremos o lançamento, e não fica absolutamente nada em que Steph seja melhor que Chris Paul (provavelmente um melhor jogador ofensivo sem bola, que é produto da ameaça que o seu lançamento apresenta). CP3 é a milhas de distância melhor passador, melhor defensor, melhor a orquestrar o ataque a partir da posição 1. Sim, melhor que Nash, um dos meus jogadores favoritos de sempre.

 

CP3 tem 10 All-NBA, as mesmas que Magic (Curry tem 7); tem 9 All-Defense, tantas como Dennis Johnson e Gary Payton, record entre point guards (Curry, lol); é o 4º de sempre em assistências por jogo, o 10º em steals por jogo, o 9º em PER, o 5º em BPM, 5º em WS/48 e 7º em VORP. Nestas últimas 4 avançadas, é o melhor point guard em todas excepto em VORP (Stockton). Mas pronto, os registos e records individuais valem de facto pouco em si mesmos, se não impactarem as vitórias, e aqui entra a estatística que, por ter trocado bastante de equipa ultimamente abriu os olhos a muitos – a percentagem de vitórias das equipas onde esteve, e como afectou o objectivo essencial do jogo, ganhar:

 

 

Nas equipas por onde passou, estas passaram de ganhar em média 36/37 jogos para 53 jogos com ele, para apenas 34 após a sua saída, e estamos a falar de períodos temporais a 3 anos antes e depois, quando possível. Uma equipa liderada por ele foi sempre entre boa e excelente, o que se pode dizer de muito poucos jogadores na História da NBA; nunca nenhuma teve um registo negativo durante a sua passagem. O basketball reference, ordenando os jogadores pelas WinShares que tiveram ao serviço das suas equipas, coloca-o como melhor jogador de sempre dos Hornets e dos Clippers. Não há muitos jogadores que podem dizer isso.

 

Factos são factos, e Chris Paul nunca foi campeão da NBA, nem nunca venceu a sua conferência. É hoje um pária, lutando contra o tempo e com um contrato que muitos apelidavam como sendo dos piores da liga até há pouco tempo. Mas também é um homem que estatisticamente tem caso para ser o melhor point guard de sempre da liga da divisão não-Magic Johnson, que 4 das 5 equipas por onde passou atravessaram o seu melhor momento de sempre ou em muitos, muitos anos. É um jogador que cresceu e viveu na conferência Oeste, onde teve que lidar com Spurs, Lakers, Warriors e Thunder, com conjuntos de jogadores absolutamente superiores aos que tinha ao seu lado. Como olharíamos para CP3 hoje se o tivessem deixado juntar-se à equipa certa de Los Angeles, e fazer a transição para um futuro pós-Kobe? Quantos títulos? Que colegas teria tido para ir à guerra?

 

É uma história inacabada, claro, e o homem pode estar a escrever a página mais bonita da carreira. Com um conjunto jovem e cheio de potencial, Chris Paul desbloqueou os Suns, tratou do seu corpo, falhando apenas 2 jogos, e Phoenix é hoje a equipa a jogar melhor basquetebol na liga, com 7 vitórias consecutivas no playoff contra os ainda campeões Lakers e Nuggets do MVP NikolaJokic, por uma margem média superior a 15 pontos.

 

Mas estamos a falar de Chris Paul (e espero que por esta altura estejam comigo quando digo que é mais correcto apelidá-lo de amaldiçoado ou azarado, em vez de incompetente ou insuficiente), e por isso nada pode ser fácil. Eis que surge o diagnóstico de infectado com COVID-19, e um enorme ponto de interrogação paira sobre a restante época dos Suns. De volta a uma final de conferência, voltará a falhar (pelo menos) 2 jogos. Gostava muito, muito mesmo, que se sagrasse campeão este ano. Porque numa era em que as discussões sobre jogadores são definidas por quem grita mais alto os títulos que têm, quero que todos o vejam como eu vejo: um jogador irrepetível, o último dos bases puros, um dos melhores jogadores de sempre, o Point God. Porque essa é a verdade.

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