From Turkey with debt

Se olharmos hoje para a tabela da Super Liga da Turquia, é com alguma incredibilidade que os nossos olhos vão continuar a descer até encontrar o primeiro dos chamados “três grandes” do futebol turco, o Fenerbahçe (em 6º), seguido do Besiktas, actual campeão em título (em 7º)… teremos de descer mais um pouco, aumentando a incredibilidade, até ao 13º posto, para encontrar o último dos três, o Galatasaray.

 

Os três juntos, conquistaram 54 dos 62 campeonatos turcos disputados, desde o início da competição em 1959, enchem os seus estádios (Galatasaray e Fenerbahçe têm 50 mil lugares, Besiktas ronda os 42 mil) e têm dos adeptos mais fanáticos do futebol europeu. São, para todos os efeitos, clubes com tradição, na Europa, mas hoje não passam de uma mera sombra do que já foram outrora.

O declínio do futebol turco, não tem uma causa específica. Muitos apontam a má gestão dos clubes, outros o sistema turco ou até o governo de Erdogan e a verdade é que todos eles desempenharam um papel-chave, na hecatombe dos gigantes do futebol turco, mas a causa, está longe de ser assim tão simples.

 

Gestão dos clubes

Burak Elmas, o actual Presidenter do Galatasaray

 

Os mandatos dos presidentes dos clubes turcos variam de acordo com o clube, mas são relativamente curtos (o Galatasaray, por exemplo, teve já 8 presidentes desde 2001… para quem não quer fazer as contas dá uma média 2 anos e meio por presidente) o que faz com que a tendência, seja gerir o clube a pensar na reeleição e não na sustentabilidade a longo prazo, até porque muitas vezes, a presidência dos clubes é apenas uma etapa na carreira política de alguém.

E se há poder e dinheiro à vista, há também (surpresa das surpresas) muita corrupção à mistura. Mas nada que fosse preocupante, desde que houvesse adeptos felizes e contratações sonantes!

Ao longo dos últimos 20 anos, a política de contratação dos clubes turcos passou por ter grandes nomes, muitas vezes já em final de carreira e com ordenados astronómicos, o que impossibilita ter algum retorno com uma posterior venda. Nomes como Didier Drogba, Miguel Lopes, Robin Van Persie, Radamel Falcão, Ricardo Quaresma, Lukas Podolski ou Dirk Kuyt passaram todos pelo futebol turco ao longo dos últimos 20 anos, quase todos no final das suas carreiras, já com os seus melhores anos para trás, mas com ordenados a refletir o estatuto que o seu nome trazia ao clube.

Esta política, significou que os três grandes deixaram, durante anos, de apostar nas suas próprias camadas jovens… algo que nunca aconteceria em Portugal.

 

O governo de Erdogan

O futebol é uma paixão sem igual na Turquia, associado a conceitos como a virilidade e com uma forte componente nacionalista. É por isso a ferramenta perfeita de propaganda para um regime político com tendências autoritaristas e Erdogan nunca se fez rogado em utilizá-la.

Desde o seu passado como futebolista (que é tão credível quanto a licenciatura de José Sócrates) à sua paixão pelo seu clube do coração, o Fenerbahçe, muitas foram as tentativas do estadista de se aliar ao fenómeno do futebol para ganhar popularidade e o desporto rei acabou por ser um dos principais beneficiados da sua política de obras públicas, chegando-se a dizer por piada que qualquer município que demonstrasse o seu apoio ao Presidente, recebia um estádio como pagamento (cá, hoje em dia, era uma rotunda e já cantava). A verdade é que foram mais de 30 os estádios de futebol construídos de raiz, desde que chegou ao poder, numa tentativa de criar emprego e valorizar certas áreas residenciais, junto a lotes de construção que curiosamente eram propriedade de outros membros do governo ou de familiares. Clubes como Besiktas, Galatasaray ou Trabzonspor têm todos estádios com menos de 10 anos, financiados pelo estado turco.

Os clubes turcos viveram uma época onde o futebol era intocável. Os contratos televisivos eram inflacionados propositadamente pela televisão estatal, os nomes dos estádios vendidos e as contas dos clubes não eram revistas por ninguém. E impostos? Não vale a pena falar disso.

Em 2000 a dívida somada de todos os clubes da Super Lig rondava os 60 milhões de euros, hoje, só a do Fenerbahçe ascende aos 621 milhões de euros, com Galatasaray e Besiktas não muito longe desses valores.

 

Crise turca


Sendo os grandes clubes do Mundo quase todos europeus, a moeda reinante no futebol é o Euro e é com ele que os clubes turcos negoceiam transferências e contratos com os jogadores que chegam de fora, apesar da moeda oficial do país ser a Lira Turca.

Mergulhado numa séria crise desde 2018 e agravada ainda mais pela pandemia, a Lira turca tem perdido valor vertiginosamente. Por exemplo: um jogador que custasse 5 milhões de euros, custaria em 2016 um valor a rondar os 16,4 milhões de liras turcas, ao passo que em Janeiro de 2022, o mesmo jogador, custaria 76,6 milhões de liras turcas, somando a isto ordenados, comissões de agentes, comissões ao gajo do clube que negociou o jogador, ao filho do presidente, ao primo, ao Fatih da contabilidade que é um gajo porreiro e tapou estes números e à senhora do bar que levou lá dois cafés durante as negociações.

Com o valor da Lira, baixou também o retorno de contratos publicitários, bilhética, transmissões televisivas, etc, face à média europeia, tornando os clubes turcos cada vez menos competitivos financeiramente.

 

Mão pesada da UEFA
Até que chegou o tão temido fair play financeiro da UEFA e como não podia deixar de ser, os anos a gastar sem limites, a vender ao desbarato e de corrupção às claras, tiveram as suas consequências.

Em 2013 o Besiktas e o Fenerbahçe foram afastados das competições da UEFA por corrupção e o Galatasaray mais tarde também o foi por não cumprir o fairplay financeiro, sob a alçada do qual os outros dois clubes também estiveram, mas não de forma tão séria. Ainda assim, não se livraram de ter de apresentar as contas (que dantes ninguém via) à UEFA e a seguir as suas rigorosas restrições
Os clube turcos, outrora invulneráveis, começavam a pagar pelos anos de má gestão…

Ainda assim, não aprenderam e os três continuaram a investir nos nomes sonantes, cortando noutras áreas, como na profundidade do plantel e nas áreas com menos glamour, como as posições mais defensivas.

 

A retirada do apoio de Erdogan e a ascensão do Basaksehir

Erdogan, o Presidente turco é um fã do desporto-rei e do “seu” Basaksehir

 

Com a crise, a popularidade de Erdogan começou também ela a cair, especialmente quando se viu que a sua promessa de transformar a Turquia numa das 10 maiores economias mundiais até 2022, tinha tanta credibilidade como Luis Filipe Vieira prometer uma Champions aos benfiquistas.

Com o distanciar dos adeptos dos grandes clubes, Erdogan começou a apostar no seu próprio clube, o Istambul Basaksehir. Adquirido em 2014 por pessoas sem qualquer ligação ao presidente turco (wink wink) e com as bancadas cheias de figurantes pagos, que tinham tanta vontade de estar ali como de assistir aos seus pais a ter relações sexuais, o clube foi progredindo no futebol turco, com muitas facilidades do estado, enquanto para outros o cinto ia apertando.

Em 2016, na inauguração do NEF Stadium (nova casa do Galatasaray), o Presidente foi recebido por um coro de assobios, que só não se repetiu mais uma vez esse ano, porque inaugurou a Vodafone Arena (casa do Besiktas) à porta fechada. O sentimento de Recep Erdogan para com o futebol turco e se os adeptos não o amavam, ele ia mostrar-lhes o que estavam a perder (pede-se ao leitor que imagine Erdogan a trautear “Baba Baby” de Kelly key enquanto toma as decisões descritas abaixo).

Erdogan acabou com muitas das regalias aos grandes de Istambul, como estarem livres de impostos ou as suas contas de escrutínio e, enquanto isso, o Basaksehir, gozando de algumas benesses que lhe permitiram crescer (poucochinhas). Sem a pressão de adeptos (parecendo que não, os figurantes não são muito de contestar… basta ver as galas do Benfica), o clube conseguiu crescer com um misto de jogadores experientes e jovens jogadores com alto potencial, acabando por se sagrar campeão em 2019/20.

 

A tentativa de recuperação
Hoje, os clubes que nunca perderam a aposta nas camadas jovens, são aqueles a quem a crise está a custar menos a passar. Ao passo que os três grandes continuam com plantéis com ordenados elevadíssimos e jogadores de quem não se conseguem livrar, os mais pequenos seguem de contas e plantéis relativamente equilibradas. No fundo, com nomes menos sonantes, mas plantéis mais equilibrados, que há 4/5 anos nem cheirariam um título… os Sportings da Turquia.

A federação turca lançou um plano de resgate aos clubes, no final de 2019, investindo mais de 2 biliões de euros na recuperação do futebol turco, com a condição que o investimento tem de ser monitorizado e os clubes têm de seguir planos estritos de gestão.

O futebol turco pode levar anos a recuperar, se alguma vez o fizer. Numa altura em que o fosso entre as principais ligas europeias e o resto do continente é cada vez maior, este poderá ter sido um passo em falso que vai custar muitos anos à Super Lig.

Resumindo… o nosso futebol está a um governo autocrático de ir com o boda!

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