Jogos com fronteiras

A AUSTRÁLIA E AS SUAS GENTES

Como todos sabemos, a Austrália começou por ser uma colónia penal. Houve gente que lá foi parar porque foi apanhada a roubar pepinos em Inglaterra (isto é verdade, meus caros). Ninguém precisava de “visto”, de “excepção médica”. Prevaricaste, meu safardana? “Ilha contigo, lá além, some daqui”, zimba.

Em termos de gestão da população humana e animal, a Austrália é um país especial. Basta recuar à introdução do coelho Europeu naquele continente, por alturas do séc. XIX, e perceber que o canguru não é mais do que um “passageiro” local: são pouco mais de 34 milhões de Pernas Longas saltitantes. Já os coelhos marotos? Serem mais de 200 milhões…

Ora, isto é trivia mesquinha, que dá uma ideia da diversidade e da aceitação, de uma forma geral, “daquele que vem de longe”. Dados do site Ipsos dizem-nos que a Austrália é um dos cinco países mais inclusivos do Mundo, logo atrás do Canadá, dos Estados Unidos, África do Sul e França, ranking que leva em conta dados como a religião, imigração, orientação sexual, identidade de género, preferências políticas e registo criminal. Como verão ao longo das próximas linhas… talvez não seja bem o caso tendo em conta este sururu.

 

ENTÃO MAS… O QUE PASSOU-SE NO AEROPORTO DE MELBOURNE?

Deixemos os coelhos de lado e foquemo-nos, por ora, em tenistas. Novak Djokovic aterrou no aeroporto de Tullamarine na quarta-feira, às 23:30, após um voo de 15 horas com partida do Dubai. Foi imediata e impecavelmente cercado de guardas armados, por motivos de “visto esquisito” e de uma “excepção médica duvidosa”. O Sérvio esperou, esperou, esperou até que uma entidade, chamada Australian Border Force, anunciou que o seu visto foi “cancelado”.

Em comunicado oficial, a ABF disse que Djokovic “não apresentou provas suficientes” que sustentassem a excepção médica, ou seja, Nole não conseguiu por A + B demonstrar porque não está duplamente vacinado contra a COVID-19, requisito essencial para entrar na Austrália. Mais acrescentou o comunicado, “a ABF continuará a garantir que todos os que chegam à nossa fronteira cumprem com as nossas regras e requisitos de entrada”. Disse mais coisas, tais como “Não-cidadãos do país sem visto válido à entrada ou em posse de um visto que tenha sido cancelado serão detidos e deportados do nosso país”. Eh lá. Calma, bicho!

 

PORQUE É QUE DJOKOVIC NÃO RESOLVEU ISTO… ANTES DE ATERRAR?!

Novak achava que estava tudo tranquilo, assim como a Tennis Australia, entidade organizadora do Open. O sérvio, que se recusa a divulgar se está vacinado ou não, disse na Terça-feira que tinha garantido uma “excepção médica”, confirmada pela Tennis Australia e pelo governo de Victoria, excepção esta que foi confirmada após duas autorizações e que aparentemente resolvia a situação para o craque competir à vontade até à data de arranque do Open da Austrália.

 

O QUE RAIOS É UMA EXCEPÇÃO MÉDICA?

Soa a “justificação de faltas” de escolinha, mas será preciso recuarmos até Dezembro, quando a Tennis Australia divulgou a sua política de vacinação para a COVID-19, que incluía um processo através do qual os jogadores podiam garantir uma excepção médica para entrar no país via Victoria sem se submeterem ao período de quarentena obrigatório de 14 dias em isolamento.

Caso uma excepção médica tivesse sido aprovada de acordo com as guidelines da Australian Technical Advisory Group on Immunisation (Atagi), seria submetida à Australian Immunisation Register, com total garantia de anonimato, ou seja, nenhum membro do painel de decisores da Atagi saberia a identidade de qualquer jogador em busca desta excepção.

A questão é que a Atagi compreende apenas um lote restrito de razões para aprovar a excepção, que vão desde doenças graves ou efeitos secundários provocados por vacinação contra a COVID-19.

Para aqueles que anteriormente tenham testado positivo à COVID, poderá justificar uma excepção médica (ou “falta de presença à vacina”) durante um período de seis meses. As razões para a excepção médica de Novak Djokovic nunca foram bem explicadas…

 

DJOKOVIC METEU ESTES PAPÉIS PORQUÊ?

Não é bem claro, até porque o sérvio não divulgou se está vacinado ou não. Toda a informação médica faz parte do processo de revisão, que é confidencial. No entanto, Djokovic confirmou que testou positivo à COVID-19 em Maio de 2020.

 

ENTÃO, QUAL O STRESS COM O VISTO?

A malta ainda está a beber a informação que pinga, mas ao que parece o controlo fronteiriço desdisse e discordou com tudo o que o governo de Victoria fez. Embora não se conhecem as razões concretas da candidatura de Djokovic para a excepção médica, o Guardian Australia apurou que a Tennis Australia foi informada pelo governo federal que um caso recente de infeção por COVID-19 não seria razão suficiente para escapar à vacinação caso alguém queira entrar, sem obrigação de quarentena, na Austrália.

A Atagi não aprovou a forma de actuar do governo de Victoria ou da Tennis Australia, segundo apurou o Guardian Australian. A tal excepção médica nem foi pedida pelo controlo fronteiriço e nem houve comunicação com a Commonwealth.

Assim, mesmo que Djokovic tivesse em sua posse o tal papel, o visto teria de ser sempre autorizado pelo governo federal. Isto significa que a decisão estava nas mãos da Ministra do Interior lá do burgo, Karen Andrews, ou do primeiro-ministro, Scott Morrison. Este último disse o seguinte

Não devia haver regras especiais para Novak Djokovic. Zero”, sublinhou.

 

MAIS ALGUÉM REQUISITOU A EXCEPÇÃO MÉDICA?

Na Quarta-Feira, o CEO da Tennis Australia, Craig Tiley, disse que 26 jogadores e staff pediram excepções médicas, sendo que apenas “algumas” foram aprovadas.

Foi reportado que outros três jogadores com o mesmo tipo de visto e excepção médica conseguiram entrar no país.

 

O QUE DISSE DJOKOVIC SOBRE A VACINAÇÃO?

Apesar de nunca ter dito se está ou não vacinado, Djokovic admitiu, em Abril de 2020, que “a vacinação é uma cena que não me assiste”… estamos, obviamente, a parafrasear, mas a posição assumida pelo Sérvio causou alguma consternação

Pessoalmente, oponho-me à vacinação e não quero ser forçado a tomar uma vacina para poder viajar, mas, caso seja obrigatória, quais são as minhas opções? Tenho de decidir. Tenho as minhas convicções e se elas vão mudar ao longo do tempo, não sei…”, afirmou na altura.

 

E DEPOIS?

Djokovic foi despachado de uma sala de espera de aeroporto para um hotel em Melbourne, sob supervisão do Departamento de Imigração. O seu staff, incluindo o treinador Goran Ivanišević, entrou no país sem qualquer problema. O sérvio deu instruções aos seus advogados para recorrerem da decisão do cancelamento do visto.

 

E O SURURU POLÍTICO?

Djokovic, que já por uma vez se deu bastante mal com esta história das vacinas, já se tornou conhecido entre a opinião pública australiana devido ao facto de achar que os famosos e poderosos devem obedecer a regras diferentes. O governo cavalgou esta onda e agiu de pulso firme.

Apesar de ter dito anteriormente que o assunto estava nas mãos das autoridades de Victoria, o PM Scott Morrison colheu os louros desta decisão no twitter

 

 

Em conferência de imprensa, Morrison também disse que era uma “obrigação do viajante fornecer a informação correcta quando chega à fronteira”. O presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, já garantiu que falou com o tenista sérvio: “Já disse ao nosso Novak que a Sérvia está com ele e que estamos a fazer os possíveis e impossíveis para que este assédio ao melhor jogador de ténis do Mundo termine imediatamente. Em nome de todas as leis internacionais, a Sérvia vai lutar pelo Novak, pela verdade, e pela justiça”, avançou, antes de chamar os Power Rangers. Estamos, obviamente, a zombar.

Este episódio não é novo no capítulo dos confrontos diplomáticos entre celebridades que só querem tirar umas chapas a cangurus e o controlo fronteiriço Australiano.

Em 2015, Barnaby Joyce, na altura Ministro da Agricultura, obrigou Johnny Depp a mandar os cães, Pistol e Boo, de volta para casa. Ou o actor despachava a bicharada em 50 horas, ou seriam abatidos. Depp chegou à Austrália num jacto privado para rodar um filme na Gold Coast. Joyce deu ordem para se investigar a fundo como raio é que os cães tinham entrado no país e acusou Depp de contrabando…

Em 2014, o actual PM era Ministro da Imigração e cancelou o visto do coach de engates Julien Blanc, que foi corrido da Austrália porque “este tipo não vende ideias políticas, fala de temas que são depreciativos das mulheres e consideramos isso uma aberração neste país”…

 

COMO REAGIU O MUNDO DO TÉNIS?

A decisão dividiu opiniões. Djokovic ganhou nove vezes o Open da Austrália, é quase um filho emprestado da terra e um ídolo para os mais de 70 mil Sérvios residentes naquele país. A forma como tudo foi decidido e comunicado não foi propriamente a melhor.

O antigo director do torneio Paul McNamee, por exemplo, ficou chocado com o tratamento dado ao Sérvio

Antes disto, outros tenistas falavam timidamente sobre o assunto. A #1 Australian Ash Barty admitiu “ser complicado, sei como é difícil para os Australianos e principalmente para os Victorianos, que passaram muito mal durante os últimos dois anos; percebo que estejam frustrados com esta decisão”. Mas isto foi antes de ser conhecida a decisão final.

Agora a sentença já saiu: Djoko vai mesmo ficar a ver o Open da Austrália, como todos nós, pela televisão e o pior é que os efeitos da decisão aussie já se fazem sentir noutras paragens. De França surgem rumores de que o Governo vai pôr as mesmas regras de acesso em Roland Garros. Há patrocinadores que ficaram muito descontentes com a imagem que o sérvio passou durante todo este processo, e que prometem rever a situação de patrocínio. A recusa na não-vacinação pode ter um custo financeiro que vai muito para além do tenístico e mediático. Veremos como conseguirá sair disto. Neste primeiro confronto da época por 6-0 6-0 para o Governo Australiano e nada mais há a fazer. Game. Set. Match.

 

Comentários
Loading...