Por caminhos nunca antes trilhados

1968, esta é uma viagem que mergulha a atenção dos leitores num contexto de mudanças e transformação no mundo. É o ano da Primavera de Praga. Dos protestos estudantis que se propagam por todo o globo. São o assassinato de Martin Luther King.Jr e o assassinato do irmão do antigo presidente americano JFK, o senador Robert F. Kennedy. São os movimentos de libertação pelos direitos das mulheres ou o irromper da continuação das exigências dos direitos civis transformada pela afirmação do movimento ‘Black Power’, como foi demonstrada pelos atletas norte-americanos, Tommie Smith e John Carlos, num acto de coragem, aquando do levantamento do punho com luvas negras no pódio, durante a cerimónia de entrega de medalhas da corrida de 200 metros, nos Jogos Olímpicos de Verão, no México.

Feita a contextualização, partimos à descoberta, por caminhos nunca antes trilhados. A história que se segue é de Marlin Briscoe, mesmo para muitos dos amantes do futebol americano, este nome nada dirá. E é por isso que decidimos contar a importância do impacto deste jogador para o desporto. Sem ele não haveria, o lendário quarterback, Warren Moon, não haveria Doug Williams, não haveria Randall Cunningham, não haveria Michael Vick, não haveria Lamar Jackson, entre outros nomes de quarterbacks negros a actuar na NFL.

Quando Marlin estava no college, em Omaha, no Nebraska, os Denver Broncos seleccionaram-no para ser defensive back com a 14ª pick do draft, o então jovem quarterback negro disse que sim, mas com uma condição, ele tinha que poder ter um tryout de 3 dias para provar que era capaz de jogar como QB.

Pelas palavras de Briscoe, «Pensaram que era louco, aqui estou eu a 14ªescolha do draft, e negro, que coloca uma condição aquando da assinatura do contrato. Mas senti que tinha de tê-lo feito. Sempre tivera confiança nas minhas habilidades, o tryout era aberto aos jornalistas e adeptos.»

Prosseguiu: «Pensei que mais pessoas poderiam ver-me, e que seria mais difícil para os treinadores ignorarem-me. Mas não fiz de mim um tolo. Não importa o que fizesse, sabia que não havia muita chance.»

E tal como havia previsto, tinha razão, o treinador dos Broncos, Lou Saban, não deu relevância ao esforço do jovem jogador. Os jornalistas quiseram saber mais sobre as qualidades depois de ficarem impressionados com a capacidade de lançamento e exercícios realizados, mas as chances que teve foram escassas em comparação com os colegas que estavam a tentar concorrer para as vagas no plantel.

Aquela podia ter sido a machadada final para as aspirações de Marlin, mas é aqui que tudo se torna fascinante. O treinador que não advogava os direitos civis nem tinha uma ideia para romper com os preconceitos vigentes viu a equipa cair para um registo de 0-3, e sem margem de manobra foi forçado a olhar para Briscoe, e assim foi a jogo, no dia 29 de Setembro de 1968.

Os Broncos perdiam por 17-10, frente aos Boston Patriots, no quarto período, e a bola que saiu das mãos de Briscoe, não era um passe qualquer, era uma chave de abertura para gerações vindouras, era um martelo contra o racismo institucionalizado que carregava os sonhos abalados de gerações anteriores. Era a entrada no território nunca antes pisado. Coube a Eric Crabtree apanhar o passe. E embora, Denver perdesse o jogo por 20-17, «The Magician», como ficou apelidado, conseguiu um touchdown com uma corrida de 12 jardas.

E na semana seguinte, entrou como titular frente aos Bengals, terminou a época com 1589 jardas totalizadas, e um recorde da equipa de 14 touchdowns lançados como rookie. A carreira de Marlin em Denver acabaria por chegar ao fim em 1969, quando foi enviado para os Bills, e, como não podia deixar de ser, nem os feitos que ele concretizou deram o direito de poder jogar como QB, foi forçado a jogar como wide receiver, posição onde nunca houvera jogado.

Por incrível que pareça, conseguiu épocas extremamente produtivas em Buffalo, e por isso foi nomeado para o Pro Bowl numa das temporadas com destaque para aquela em que marcou 8 touchdowns, totalizou 1036 jardas e recebeu 57 passes. Mais uma vez mudaria de equipa, e a próxima paragem foi Miami, onde fez parte da mítica equipa de 72 e ganhou 2 anéis pelos comandados de Shula.

Teve passagens pelos Chargers, por Detroit e pelos New England Patriots, finalizando a carreira com 224 recepções, 3,537 jardas e 30 touchdowns, a juntar aos números como quarterback, de 1,697 jardas, 14 touchdowns,49 corridas que lhe valeram 3 touchdowns e 336 jardas totalizadas e um lugar como pioneiro na posição.

Esta história é impressionante porque durante muito tempo imperava a ideia de que os negros não tinham inteligência para jogar como centers, como inside linebackers ou como quarterbacks, como tal, mesmo que tivessem desempenhado essas funções no college, assim que fossem draftados, não lhes era conferida a chance de poder sequer demonstrar o valor na liga, porque mal chegassem eram levados a ocupar outros lugares no terreno de jogo.

Isto pode levar-nos a fazer uma reflexão contemporânea.

As diferenças na aceitação quanto aos negros determinavam que tinham de ser relegados para posições em que as capacidades atléticas sobrepunham-se a qualquer requisito de apetência do foro cognitivo ou de liderança. Desse modo, iriam ser caracterizados pela força, pela velocidade, pelo porte atlético, portanto passavam a jogar como running backs, como wide receivers ou a mudar de modalidade. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Walt Frazier, que figura no Hall of Fame da NBA, mas que chegou a ser um quarterback com sinais promissores no college, e que acabou por desistir do sonho por acreditar que não teria futuro na NFL como QB.

Em 1999, a liga continuava a ter apenas 20% dos centers negros, 18% dos quarterbacks negros, ao passo que com running backs o número saltaria vertiginosamente para 86% e wide receivers também com 91%, daí até 2014, pouca coisa tinha mudado no que toca a quarterbacks com 19%, enquanto wide receivers tinha havido um decréscimo para 88,2%, segundo os números do The Institute For Diversity and Ethics In Sport.

Com o avançar dos anos as coisas parecem estar a mudar aos poucos, mas em simultâneo as percepções quanto ao lugar que cada um deve ocupar no terreno afectam tanto alguns jogadores brancos que não se sentem representados em posições tradicionalmente ocupadas por jogadores negros, e que por isso são desencorajados pelos treinadores que já têm um modelo de referência daquilo que querem seguir. Como jogadores negros que também não fazem questão de jogar em posições tradicionalmente ocupadas por brancos.

Por exemplo, é raro verem-se cornerbacks brancos, na mesma análise por parte do The Institute For Diversity and Ethics in Sport, pode-se ver que de 1999 em que a percentagem era de 4% até 2014 a queda foi abrupta e a percentagem tornava-se ínfima, 0,6%.

Se antigamente os motivos eram derivados do preconceito e do racismo, cada vez mais o jogo orienta-se por tendências daquilo que resulta ou não. Se os treinadores olham para o jogo e vêem um jogador com características que o agradam, eles vão apostar nesse jogador independentemente da cor. Estamos com um crescimento de quarterbacks negros, mas não temos tantos running backs brancos. Então se um atleta for branco, pela prevalência de running backs negros, o treinador vai ter reticência em apostar num jogador branco para actuar como RB e o próprio jogador não se sentindo representado poderá optar por mudar de posição.

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