Três Cartazes Fora da Liga: Kyrie Irving

Parte 3/3

Dos três ilustres ausentes da temporada até agora, este é o caso mais complexo, e paradoxalmente, o primeiro a voltar aos pavilhões da NBA. O problema do Kyrie Irving não é desportivo, não é de saúde física ou mental, nem contratual. É ético. Daí ser mais difícil falar deste dilema sem, necessariamente, ultrapassar as fronteiras do basquetebol.

 

Trio de luxo: Harden, Durant e Irving

 

Mas comecemos pelo princípio. Os Brooklyn Nets juntaram 3 dos melhores jogadores de basket da actualidade: Kevin Durant, Kyrie Irving (em 2019) e James Harden (em 2021). Com uma armada destas, os Nets tiveram uma temporada absolutamente bombástica, apesar do trio ter jogado muito poucos jogos juntos. Quando aconteceu, os números foram absolutamente incríveis. Tanto que foi preciso um pé em cima da linha para os Nets não irem à final da Conferência Este. Bem… Na verdade, Durant viu-se sozinho na série contra os Bucks, depois de perder Harden no Jogo 1 e Irving no Jogo 4, por lesões. Apesar de tudo, foi preciso o melhor de Giannis e um Jogo 7 com prolongamento para eliminar os Nets diminuídos. O futuro parecia promissor, e não tivemos dificuldade em imaginar que na temporada seguinte, esta equipa dominaria a Liga com estes três jogadores saudáveis.

 

Irving passou a ser uma das caras da luta anti-obrigatoriedade de vacinação

 

Chega a temporada de 2021/22. O mundo continua assolado pelo Covid 19, e a NBA toma as suas precauções para que jogadores e staff sejam o mais protegidos possível. Os protocolos de isolamento em caso de suspeita ou contacto com casos positivos, as testagens, tudo foi organizado de maneira a diminuir a probabilidade de se voltar a viver um cenário do tipo Bubble como em 2020. Mas não foi só a NBA que se preocupou com o assunto. O Estado de Nova Iorque, o mais tocado dos Estados Unidos durante o pico da pandemia, decidiu instaurar um mandato que obriga as pessoas a estarem vacinadas para poderem trabalhar em locais com grande afluência de público. Como devem calcular, as arenas desportivas estão na primeira linha desses lugares de aglomeração. Assim sendo, quem não tivesse pelo menos uma vacina contra o Covid19 estaria automaticamente inibido de jogar basket diante de uma arena cheia. Kyrie Irving, um homem de convicções, decidiu desafiar o mandato, dizendo que, se a vacina não é OBRIGATÓRIA, nada nem ninguém o fará tomá-la. Isso faria dele inelegível para jogar em casa e nos jogos contra os Knicks, já que ambas as arenas (Barclays Center e Madison Square Garden) são em Nova Iorque. Seria um jogador para os jogos fora, apenas. 35 milhões de dólares na temporada para jogar menos de metade dos jogos da equipa. Ainda assim, era melhor ter um jogador deste calibre em metade dos jogos do que em nenhum. Sendo o campo de treino dos Nets considerado um recinto privado, não haveria impedimento para Kyrie treinar com a equipa. Apenas não poderia estar presente na arena nas noites de jogo. Um compromisso nada confortável, mas os Nets não tinham maneira de obrigar o jogador a vacinar-se, já que a dita vacina NÃO ERA OBRIGATÓRIA.

 

Estranhamente, quando achámos que os Nets estavam resignados a ter o jogador apenas nos jogos fora, a equipa decidiu que, se o jogador não podia jogar em casa, também não treinaria com a equipa, nem jogaria fora. Um balde de água fria para os fãs de Brooklyn e de basket de maneira geral. Um dos melhores jogadores do mundo, saudável e sem lesões, estava privado de campo por uma escolha pessoal.

 

Patty Mills recebeu muito carinho de fãs e colegas em Brooklyn

 

A temporada começou. Os media comentaram a ausência de Kyrie, a posição da equipa, talvez uma maneira de o pressionar a fazer o que era “esperado”. Os Nets sentiram falta do seu base espectacular, mas começaram o ano com bastante força. Apesar da ausência de Kyrie, lideraram rapidamente a Conferência. Patty Mills, o base veterano vindo de San Antonio, teve um excelente início de temporada, depois de um verão em que conquistou a medalha olímpica de bronze com a Austrália. E os Nets foram ganhando. E o Kyrie continuou a não jogar. O mundo prestou menos atenção ao braço de ferro entre o jogador e o Estado de Nova Iorque/ os Brooklyn Nets. Estávamos resignados. “Este ano, este menino não calça…”.

 

A questão levantada pela posição de K.I. foi alvo de muita conversa, debate, análise e opinião. Foi dito que era uma forma de chamar a atenção. Que Kyrie já não está tão comprometido com o jogo. Que lhe interessa mais ter razão do que honrar o seu contrato. Que o gosto pela polémica o fez adoptar uma postura de mártir. Que deveria vacinar-se e acabar com esta novela mexicana, pois era uma falta de respeito pelos fãs e pela equipa, que pagam para o ver jogar, e pelos colegas, que ele poria em risco recusando vacinar-se. Kyrie foi crucificado, chamado de alucinado, de iluminado, entre outros adjectivos menos poéticos. “O que se pode esperar de um tipo que pensa que a terra é plana?”

 

Gostaria de manter a minha isenção quanto ao tema. Não que não tenha opinião sobre a vacina; apenas acho que neste caso não é a minha opinião que está em causa, mas a do Kyrie Irving. A sua recusa em vacinar-se, incorrendo perdas monetárias IMENSAS (presentes e futuras) vai além da simples casmurrice, do ponto de vista do jogador. Nem é, segundo ele, por desconfiança em relação à vacina, ainda que ele não pareça particularmente convencido da sua eficácia. O combate de Kyrie é pelo direito e liberdade de escolha. Não sendo obrigatória, a vacina não deveria, na opinião de Kyrie, impedir pessoas que escolham não a tomar de viver a sua vida normal, de manter as suas fontes de rendimento. Ele renuncia a milhões de dólares porque pode, mas sobretudo para falar em nome daqueles que não se podem permitir perder os seus empregos, e sob a pressão de se sustentarem, acabam por se vacinar. Estamos a falar de direitos fundamentais, não de teoria da conspiração sobre a existência de chips 5G nas vacinas. Imagine que em vez de um jogador milionário, Kyrie é um trabalhador do Barclays Center, que ganha a sua vida numa tarefa menos bem remunerada que um jogador de basquetebol profissional. Se ele tem o direito de não se vacinar, já que o mandato não obriga ninguém a vacinar-se, será justo ele, que escolhe não o fazer, não ter a possibilidade de continuar a trabalhar num local onde se cruza diariamente com dezenas de milhares de pessoas, mesmo observando minuciosamente todos os protocolos de segurança impostos? Se é assim tão certo que a vacina é a solução absoluta, porque razão em vez de um mandato a vacina não é tornada definitivamente obrigatória?

 

Não pretendo ter resposta para estas perguntas, todas elas válidas, e às quais cada um de nós responderá à sua maneira. Mas a parte mais caricata da história começa agora…

 

Depois de entrarmos no tempo invernal, bem mais propício à propagação do vírus, e com o aparecimento de uma variante com um nível de transmissibilidade bem superior ao que conhecíamos até então, começa em dezembro o fenómeno das baixas por covid na NBA. Jogadores, mesmo vacinados, começam a apanhar Covid, ou a ser postos em protocolo de segurança. Lógico que a vacina não é uma cura, nem impede de apanhar o vírus, sempre foi dito pelas autoridades sanitárias por todo o mundo. Quando muito, ajuda a reduzir a sua propagação de forma pandémica, e ajuda a atenuar os efeitos mais violentos, que levam a morte ou sequelas graves no aparelho respiratório. Mas a realidade é que as equipas da NBA, uma por uma, começaram a apresentar rosters cada vez mais reduzidos por conta do Covid. Depois de uma razia em várias equipas, os Brooklyn Nets foram igualmente atingidos. E diante da hecatombe que causou um défice de bases na equipa, o impensável aconteceu: a equipa chamou Kyrie, o não-vacinado, para substituir jogadores vacinados que estavam indisponíveis por terem contraído Covid19!

 

Sean Marks, o polémico e pragmático GM dos Nets

 

A ironia da situação não escapou a ninguém. A equipa que não aceitou o jogador em regime de part-time, decidiu chamá-lo para jogar onde fosse possível. A justificação do GM Sean Marks

As escolhas que foram feitas no início da temporada tinham em conta a necessidade de continuidade na equipa

 

Porém, com a entrada de Omicron em campo, essa continuidade “foi para o brejo”, como diriam poeticamente os nossos irmãos brasileiros. E a meio do caos, vale tudo, inclusive recorrer ao pária, reabilitá-lo e fingir que nada disto alguma vez aconteceu. Mas como a vida não é simples e adora um bom plot twist, a reabilitação do Kyrie Irving foi temporariamente interrompida por um diagnóstico positivo… à Covid19!

 

Riam-se, riam-se. Isto tem tanto de cómico como de trágico. O desmoronar de ideias, de convicções, de posições, a reviravolta, o enredo é perfeito demais para a Netflix não pegar na coisa daqui a uns anos (ou 6 meses, o mundo anda a uma velocidade estonteante, estes últimos tempos…) e fazer um docu-série de 8 episódios! Mas a verdade é que, depois de passada a tempestade, depois de amolecidos os corações, Kyrie já treina com a equipa, e o seu regresso é iminente nas quadras da NBA (onde não vigore um mandato que impeça os não vacinados de… vocês entenderam a ideia!); dos três cartazes, foi o mais complexo pois não se tratou de uma ausência por problemas físicos ou mentais, mas sim por – e leiam isto sem qualquer julgamento – delito de opinião. O facto de existirem leis diferentes em cada estado é próprio de um Estado Federal; mas o facto de as opiniões divergirem sobre o nível de dureza das medidas a aplicar para preservar as populações de uma pandemia de proporções mundiais deve-nos fazer reflectir. O que estamos afinal a fazer? Quem de nós estaria em condições de fazer o que este jovem milionário fez por convicção? Quantos de nós tomaram as vacinas “não obrigatórias” para poderem manter um semblante de vida social e/ou profissional? E quantos de nós podem dizer sem sombra de uma dúvida que estão 100% confiantes na eficácia das vacinas e no decréscimo de casos subsequente, quando as novas variantes e mutações nos fazem temer exactamente o contrário, e a manutenção de um estado de alerta por muitos e tristonhos anos, ainda?

 

Kyrie Irving vai continuar à espera da sua oportunidade

 

A um momento, devemos reconhecer a nossa ignorância, e deixar fazer quem sabe, quem faz por saber, quem está na vanguarda do seu campo e tem em mente o bem comum acima de todas as coisas. Mas o livre arbítrio, esse eterno inimigo das ideias e regimes totalitários, esse companheiro silencioso da nossa condição de homo libero… Quando e em nome de quê ou de quem é que é “aceitável” que ele nos seja retirado “para o nosso próprio bem”? Acredito que sejam algumas das questões que o Kyrie nos quis colocar, e sobre a qual não me parece inútil reflectir e debater. Até lá, ficamos na expectativa do seu regresso tão aguardado. Nas SUAS condições. Sem ceder às SUAS convicções. E quando o virmos em campo, todos queremos que o seu jogo fale mais alto que tudo o resto. O que não significa que o devamos mandar calar…

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