Precisamos de falar… Episódio 1: Neide Giovania Dias

“Precisamos de falar”. Aquela frase temida por todos os maridos, porque pode querer dizer uma série de coisas. Pode ser para falar de um assunto fracturante, uma queixa de algo profundamente doloroso que tenhas dito ou feito a 29 de Julho de 2012 às 23h48, e que ela não consegue superar… ou de tu nunca baixares a tampa da sanita, deixares sempre a roupa atirada no chão da casa-de-banho e a toalha molhada em cima da cama! A incógnita, o não saber, o drama que se gera em volta dessa frase torna-a quase uma ameaça, uma espada de Dâmocles sobre as cabeças dos famigerados, incompreendidos e sempre sacrificados maridos. Parece-me portanto oportuno transformar esta frase introdutória em crónica, e nela tratar os elefantes na sala, os problemas que vemos e que não podemos deixar continuar a crescer sem, pelo menos, falar neles.

 

Dia 1: Campeonato de Portugal - SL BenficaO tema de hoje é a atleta angolana Neide Giovania Dias. Fundista de 33 anos, corre os 800, 1500, 3000 e 10.000 metros. Conta com uma final dos 1500 metros no Campeonato do Mundo de Atletismo em 2019, é recordista angolana da distância, e tem um longo percurso desportivo atrás. Desde 2004 que acumula medalhas a nível nacional e internacional, com um sonho em mente: representar o seu país nos maiores palcos, e ver hastear a bandeira de Angola ao mais alto nível. E que palco é maior para qualquer atleta que o dos Jogos Olímpicos? NENHUM! As Olimpíadas são a maior reunião de desportistas do planeta, são a ocasião de mostrar e demonstrar o seu valor ao mundo inteiro. É uma honra imensurável para todo e qualquer atleta, até porque o nível de exigência para se qualificar é muito elevado. Nos desportos individuais, parece-me mais difícil ainda. O atleta tem que contar muito com a sua força mental, pois, por melhor que seja a equipa à volta, a preparação… na hora H ele está sozinho, face à adversidade, face aos adversários, face à sua necessidade de sublimação. A corrida de fundo é uma excelente ilustração desse paradigma. Quando as pernas estão cansadas, quando o peito bombeia a todo o vapor, quando todo o corpo só pede repouso ao risco de desfalecer, a mente assume o comando, e ordena que continue. O limite ainda não foi atingido. Se o físico falha, o mental passa a conduzir.

 

Saída de Angola muito cedo, em Portugal desde os 6 anos de idade, Neide é atleta desde os 14 anos. Apesar de ter vivido quase toda a vida longe da terra que a viu nascer, afirma que o hino que gostaria de ouvir aquando das suas vitórias na pista é o angolano. A partir daí, a escolha de representar Angola (que se colocou aos seus 16 anos) foi para ela uma evidência. E assim foi que, ao longo dos anos, Neide se foi treinando, preparando, competindo, perdendo e ganhando, até que a recompensa maior chegou: a qualificação para os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020(+1). Neide tinha os tempos requeridos para a qualificação directa, o que lhe dava automaticamente o direito de representar o seu país nas diferentes especialidades. Já em Fevereiro deste ano, em entrevista a uma plataforma angolana de desporto, a atleta queixou-se do pouco apoio que tinha por parte da Federação Angolana de Atletismo. Não sabe ao certo se o facto de viver fora de Angola terá influenciado esse tratamento, mas a verdade é que, salienta, os outros atletas dos PALOP qualificados beneficiam de bolsas olímpicas para ajudar com as despesas de preparação, e ela não. Mas o pior estava para vir, infelizmente.

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As versões variam e divergem nos órgãos de comunicação, mas a verdade é que foi noticiado que Neide não foi inscrita a tempo pelo Comité Olímpico Angolano para participar na Olimpíada, por razões meramente administrativas. A atleta culpa a Federação Angolana de Atletismo por não ter tratado atempadamente da sua inscrição. A Federação defende-se, dizendo que em Fevereiro, Neide tinha apenas 4 meses de validade no seu passaporte, e demorou demasiado a tratar do novo e enviá-lo. Deste imbróglio sem nome, onde os únicos lesados são uma atleta que dedicou a sua vida à competição de forma a poder defender uma bandeira que não a soube proteger quando ela precisou, e o desporto angolano, que perde uma participação olímpica por mera negligência. Porque uma Federação que imputa a responsabilidade de assuntos administrativos desta natureza a um atleta não merece sequer existir. Porquê uma federação, se não apoia os atletas? Para que serve uma federação se o peso da performance está nos ombros do atleta (sem ajudas nenhumas), se o peso dos assuntos administrativos está nos ombros do atleta? Faz-me lembrar outros episódios em outras modalidades, nomeadamente o futebol, onde há alguns anos o Manucho só se conseguiu juntar à selecção quase no fim de um estágio de preparação, por um problema de passaporte caducado, ou  basquetebol masculino, em que a selecção angolana foi expulsa de um hotel na China, em pleno mundial em 2019, por problemas de logística não resolvidos…

 

Angola é um país com inúmeros problemas. Muitos mesmo. Mas o principal, a meu ver, é um problema de atitude, que advém da falta de visão a longo prazo. Existe no país uma vontade de construir e consolidar, mas a mesma não é acompanhada por algumas pessoas que dirigem instituições, e muitas vezes as gerem de forma arbitrária, em modo “la loi, c’est moi!” Não podemos nem devemos comparar realidades diametralmente opostas, mas eu acredito que muita coisa depende da vontade, muita coisa depende do empenho, muita coisa depende da capacidade de compromisso dos angolanos com os seus objectivos. No desporto, temos visto isso por parte dos nossos atletas. Em situações adversas, dão o melhor que podem, e muitas vezes não são reconhecidos (para não dizer recompensados, que isso é outro tema). A Neide Dias, cuja maior vontade era carregar as cores de Angola numa olimpíada, viu o seu sonho ceifado por uma realidade crua e brutal. Essa realidade, que deixa atletas apeados quando têm tantas condições para competir quanto qualquer outro, é uma chamada de atenção para o desporto angolano em geral, que nos últimos anos tem conhecido uma franca regressão em várias modalidades. A hegemonia criada nos anos 80 e que se prolongou até aos anos 2010 no basquetebol continental é uma coisa do passado. A esperança criada pela participação no mundial de futebol de 2006 e o aparecimento de alguns jogadores promissores foram eclipsados pelo franco fiasco do CAN 2010 organizado em casa, e consequente declínio da competição no país. Enquanto em Angola não se encarar o desporto como algo sério, enquanto não se exigir dos responsáveis desportivos nem que seja metade do que se exige dos desportistas, não teremos atletas capacitados, motivados e serenos para representar o país e dar o seu melhor. Apesar de tudo, a 8 dias das Olimpíadas, desejo toda a sorte do mundo aos atletas angolanos que vão representar o país, contra tudo e todos. Nós sabemos (ou imaginamos) as dificuldades que vocês devem ter atravessado para conseguir estar onde estão.

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